quinta-feira, 11 de novembro de 2010

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Hoje, como nos outros dias todos, morreu um senhor. Aliás, como nos outros dias todos terão morrido muitos mais senhores e senhoras. Mas este era um senhor que, aparentemente, todos conheciam e alguns até ficaram tristes com o óbito, pelo menos na internet dizem que sim. Chamava-se João Serra e andava pelo Saldanha a dizer adeus (ou seria olá? Acho que era adeus porque deram-lhe a alcunha de senhor do adeus e as alcunhas nunca mentem). Na verdade o que ele fazia era acenar aos carros que passavam e pronto. Ou seja, era exímio na primeira metade da abordagem das prostitutas de estrada, o que para alguns pode até ter sido uma desilusão: viam o velho a acenar, paravam mas depois não havia um preço, nem sequer dirty talking, era só aquilo. Ah, algumas pessoas também saberão que gostava de cinema porque escrevia num blogue sobre filmes. É engraçado como as coisas são. A morte de um velho solitário e rico o suficiente para nunca ter trabalhado e que durante anos acenou aos carros numa zona conhecida de Lisboa é marcada por algumas notícias e centenas de manifestações de pesar cibernético. Se calhar escolheu bem a zona e os alvos dos adeuses. Se por acaso andasse pelo Eduardo VII a dizer olá a quem por lá anda a pé, provavelmente tanto aceno ter-lhe-ia valido uma ou outra violação geriátrica, algumas sovas, ou até umas acusações menos simpáticas de aliciamento duvidoso. Trata-se de senso comum: qualquer velho que se meta com pessoas do nada e sem razão é rapidamente rotulado de maluco depravado. Excepto no Saldanha, pelos vistos. Até hoje nunca tinha contactado com este senhor e isto pouco interessa. Aliás, todo este assunto é pouco importante - um velho que viveu a vida toda com a mãe, via filmes e dizia adeus, "uau, espectacular, que interessante, conta-me mais", dirão alguns. Mas na verdade este meu comentáriozinho não é totalmente inocente. Por muito indiferente que me seja que este senhor tenha tocado o coração de não sei quantos automobilistas e/ou penduras que num rasgo de fascínio podem até ter comentado "olha que espectáculo, um velho de óculos a dizer adeus! Vou retribuir. Que máximo, nem no Jardim Zoológico!", este assunto deu-me alento para manter uma ideia que já tenho há tempo bastante. O Sr. João Serra era um solitário, era sozinho como se diz na linguagem técnica do comentário da vida alheia, cujos profissionais não hesitarão em apontar ao defunto um suposto piquinho a azedo. Tinha amigos mas imagino que poucos, até porque ser solitário é mais ou menos isso, e apesar de muitos saberem quem era poucos o conheciam de facto. Ora, no entanto, há um grupo de pessoas que sentindo-se privilegiadas por um dia terem acenado a um estranho (o que vem ao encontro do valor social atribuído à ocupação dos bancos de trás do autocarro nas excursões da escola) e mesmo não sabendo sobre ele mais do que eu descobri em 10 minutos no Google, o querem lamentar, celebrar, homenagear e enlutar, quiçá. E é aqui que eu, demoradamente, queria chegar. Se fosse comigo eu não os queria no meu velório/enterro/after-party/cremação/ritual necrofálico/banquete/ o que quer que seja desde que não chova. Se para celebrar um aniversário apenas reunimos quem nos faz sentir bem porque raio não o haveremos de fazer no fim da linha? Claro que posso morrer jovem e de repente mas, sem qualquer presunção arrogante, duvido, e além disso as pessoas cuja presença não me agradará serão mais fáceis de enumerar daqui a cento e tal anos. Sim, cento e tal é a minha meta. E é por isto que eu não aceno a estranhos que passam por mim de carro, seja no Saldanha, na Quinta Avenida, na Rua do Brasil ou na Praça Deera. Simplesmente não me agrada a ideia de pessoas que não gosto, não conheço ou não quis conhecer lamentarem o meu desaparecimento, ainda que compreenda a perda que possa ser para a humanidade em geral e para tudo o que é vagina em particular. Ainda assim, recuso achar simpático que alguém pene por outra pessoa cuja única e maior ligação partilhada se resume a uns segundos de mão no ar. Mas vá, tenho de ser justo, nunca ninguém terá tanto estilo com um saco do El Corte Inglés.

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