terça-feira, 1 de maio de 2012

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Há 67 anos atrás a Blondi (uma cadela, não a banda) acordou e deu ao rabo. Porquê? Sei lá, é o que os cães fazem: comem, dormem, brincam, dão ao rabo – à cauda na verdade – e lambem os próprios genitais. É a única coisa que lhes invejo, lamberem os próprios genitais e ainda assim ter as pessoas a sorrir-lhes, a dar festinhas e a chamar beijos às lambidelas que recebem dos bichos. Eu se lambesse a cara a alguém depois de dez minutos a salivar sobre os meus genitais seria um porco depravado com causa provável para uma estreia em tribunal. Um cão é fofinho. A Blondi (a cadela, não a banda) era uma pastora alemã. Obviamente. Em pequena gostava de comer, de dormir, de brincar, de festinhas e de destruir coisas com os dentes o que lhe valeu umas boas arrochadas até aprender, após apanhar o bastante, que a raiva e adrenalina que concentrava em rasgar chinelos, jornais e sapatos fazia muito mais pelo regime e pelo dono quando aplicadas a judeus e ciganos. Pelo menos era o que o dono dizia e a Blondi (a cadela, não a banda) como boa cadela que era, fiel companheira e animal bem mandado ofegava com a língua de fora, focinho rasgado em sorriso e a cauda qual hélice espanador a dizer que sim, que sim, apesar de só conseguir ladrar de volta. Ao menos ladrava em alemão. Obviamente. Nessa manhã a dona acordou com ela (ou já era tarde? Sem ver a luz do dia há duas semanas torna-se difícil adivinhar. Além disso desde que se mudaram – para lá de 3 meses que nestas coisas das datas os cães são muito chatos – que o cheiro lhe viciava a orientação. Até a ela, à Blondi (a cadela, não a banda) começava a incomodar respirar dentro do bunker. Não é por nada mas até um cão reconhece os avanços na higiene pessoal desde 1945), chamava-se Eva mas a pastora alemã, se falasse, chamar-lhe-ia vaca de merda, pão sem sal do caralho ou apenas puta. Não se trata de vernáculo desbocado, longe de mim, mas se a Blondi falasse (a cadela, não a banda) teria síndrome de Tourette, tão certo como ladrar em alemão. Obviamente. O dono acordou mais tarde, estava mais magro e a barba ia agora para o terceiro dia sem ser cortada. Guten tag meine Schatz, disse ele ainda ensonado, ao que a puta (a Eva, não a Blondi (a cadela, não a banda)) respondeu com outro guten qualquer coisa. Depois baixou-se à altura da cadela e afagou-lhe a cabeça. Num tête-à-tête fraterno, suficientemente próximo para sentir o bafo quente do animal, disse em tom de acrescento ou como quem quer esclarecer alguma coisa “sim, para ti também Eva” e foi lavar a cara. A cadelinha gostava da atenção e se achasse, acharia que podia viver sempre assim, mesmo com saudades de correr ao ar livre e assustar a malta dos pijamas, ainda que naquela altura pouco lhes sobrasse para abocanhar. No bunker havia algumas crianças o que não a aborrecia de todo e de vez em quando saia para passear, algo que não fazia desde que as paredes começaram a estremecer com mais força e durante mais horas mas cuja memória ainda dava para acalmar a vontade. De forma geral dir-se-ia que estava feliz e quando o tempo era chato e o ar pesava tinha sempre os genitais para lamber ou um sapato roubado que pudesse roer e lambuzar. Nesse dia deram-lhe comida a mais, sobras da noite anterior. Tinha havido uma espécie de festarola com o dono e a Eva a assinarem uns papéis e a beijarem-se de seguida. Estranhou a fartura principalmente porque já há dez dias tinham comido bolo de aniversário e nos últimos tempos nem as crianças escapavam ao chucrute de lata. Houve charutos e cigarros de boquilha, conhaque, whiskey, champanhe e bombons e dançou-se ao som da grafonola que variava entre Pfitnzer e Wagner. Obviamente. Que porcaria de música ouve esta gente, pensaria a cadela se pensasse. O dono discordaria da canina opinião mas também ninguém pede a um cão para animar a noite com o seu gosto musical; qual gosto musical!, a Blondi (a cadela, não a banda) comeu até se fartar e depois rebolou de cansaço. Para a sobremesa as criancinhas tinham reservado uma brincadeira de cowboys e ela tinha sido escolhida para o papel de cavalo; vá lá que não se lembraram de brincar à invasão de Troia. Dezenas de “hi-yo, Silver!” depois e a Blondi (a cadela, não a banda) estava estafada e sem fôlego, de língua à banda na alcatifa que minutos antes se enchera de areia de deserto, penas de índios e foras da lei mascarados. Tal era o cansaço que nem estranhou quando o médico se aproximou dela, primeiro com meiguice e depois com firmeza pois é firmeza que se quer quando se agarra um animal pela gorja. Blondi numa mão (a cadela, não a banda) e seringa na outra com o fino tubo de metal no ar, brilhante e em repuxo só para confirmar que dali saía o pretendido líquido. Tudo pronto, pontualidade germânica. Obviamente. Um ganido, talvez dois, e a pastora alemã passava a memória de cão em cabeça de homem, do homem, já que a mulher, a puta, a Eva, sabia que o destino lhe seria semelhante. Eva, crianças e demais todos corridos a cianeto colhido em pequenas cápsulas, sem barulho e sem sujar que assim ficava tudo limpo e igual a antes. Talvez pensassem que os deixariam ali envernizados como atracção de museu, não os deixaram a eles mas deixaram outros tal era a distância do engano a que estavam os suicidas do bunker. Blondi (a cadela, não a banda) e os outros já lá iam e a Europa a caminho, quando poucos meses depois a D. Catarina e o Sr. Ricardo de Miami adoptaram a Débora. Muito rebelde era a Débora, tão rebelde quanto bonita e loira, muito loira. Não foi educada à pancada nem aos "senta, Débora" e "dá a pata, Débora", não fez de cavalo para ninguém e tão-pouco há relatos de que tenha lambido os seus próprios genitais. Também não há relatos de alguma vez ter sido cadela, apesar de uma coisa não impossibilitar a outra se a flexibilidade for treinada com insistência e uma boa dieta e do punk ser famoso pelas suas bizarrices. Não sei se conhecia a Blondi antes de fundar a banda que a tornou famosa mas bastou meter-lhe um “e”, cantar meia dúzia de músicas depois, new wave para ali, new wave para acolá e nascia mais uma estrela de rock platinada. Bonita, loira e famosa, assim continua a vocalista dos Blondie. Animal, morta e desconhecida, assim foi a cadela de Hitler. As efemérides são fodidas.

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