sexta-feira, 1 de junho de 2012

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Pico, 31 de Maio de 2012

Caro Fernando,

Hoje traí o motivo mais forte da nossa relação, o único na verdade. Demorei alguns dias a pensar se o devia fazer, procurei soluções e por fim decidi-me. Fui em frente. Não foi fácil, por favor não julgues que o tenha sido. Os passos que tomei doeram a cada movimento e procurei durante todo o caminho por desculpas que me pudessem atrasar. Era necessário, entendes? Precisava de mudar, não digo uma mudança séria mas, pelo menos, um corte, algo que me aliviasse deste fardo. E que fardo! Se ao menos o pudesses ver ali caído como cachos talvez compreendesses mas assim não tenho a certeza. Oh, a memória de vê-los no teu chão e não neste... O chão, os espelhos, a técnica e os movimentos e a maneira de o tocar foram de tal modo diferentes que nada ficará igual. Já não me recordo da última vez que uma mulher lhe tinha tocado, desta forma quero eu dizer. É uma grande mudança para mim, sabes? Estou neste momento mal disposto e talvez se deva ao que fiz apesar de o ter feito por simples necessidade e não por um qualquer capricho de traidor. Talvez a necessidade não seja assim tão simples mas está feito e agora de nada vale discorrer sobre a mesma. Como disse foi uma mulher, as mãos dela tocaram-me e retocaram-me e se devo apontar-lhe alguma falha apenas referirei que não o humedeceu antes, como sempre tiveste o cuidado de fazer. Recordo agora os tempos em que chegava e te via e me sorrias com o buraco de um dos molares superiores a sorrir também. Por vezes tinha de esperar e apesar de te saber concorrido sempre esperei, e quando dizias que já não dava e me aconselhavas a voltar outro dia eu aceitava com a certeza de que havia de regressar para as tuas mãos. Nesse tempo que dedicávamos um ao outro as tuas mãos pertenciam-me e eu, em parte dominado pelo medo de me magoar, ficava imóvel à mercê delas. A atenção que tinhas era toda para mim e com a delicadeza que te vive apenas na ponta dos dedos fazias a tua arte. De barba e careca ruivas, a bata verde morto ou branco vivo e sempre com um comentário xenófobo ou um apontamento sobre caça prontos a quebrar o silêncio que raramente aparecia, lá me cortavas o cabelo. Esses tempos foram agora alterados para sempre e a mantê-los vivos fica a memória e a certeza de que voltarei a sentar-me na tua cadeira, ainda que não saiba quando. Deixaste de ser exclusivo e é exactamente isso que te quero dizer com esta carta. Desta vez quem me cortou o cabelo foi outra pessoa, uma mulher, uma desconhecida, uma "estrangeira" se aí falássemos deles como cá falam de nós. Calou-se sempre e quando falou foi sempre por minha iniciativa e sempre num tom forçado e desconfiado. Ao contrário de ti, que a tens redonda, esta tinha uma face longa, uma expressão equídea, e se "a cavalo dado não se olha o dente" arbitrasse as pessoas que trabalham com cabelo estarias em desvantagem mas, que fique claro, somente pela comparação de dentaduras. Não se pode dizer que era feia e com certeza lhe apreciarias o rabo muito melhor que eu pois tenho para mim que um homem da tua idade e aspecto, além de casado, a certa altura diminui as exigências para manter viva a ilusão de que a lamparina de galã ainda tem azeite suficiente que a faça brilhar. Sobre a cabeleireira não sei o nome, apenas decorei que tem um filho na fisioterapia tal foi a pobreza da conversa. Tu tens filhos e filhas e deles sei muito mais, bem como de mim conheces o suficiente para mantermos os nosso diálogos sem dificuldade. Além disso, entre os teus clientes encontro amigos e familiares e isso nota-se sempre que repetimos um assunto como se a afinidade estivesse decorada. Esta não usou uma lâmina para me rapar a nuca e no final não me salpicou o pescoço com álcool seguindo-se umas palmadas agradáveis. Por causa dos nervos e do ar condicionado suei o tempo todo e não foi pouco, foi muito, tanto que à segunda vez o ar do secador veio frio. Entendi isto como uma pequena atenção da parte dela mais pelo incómodo que lhe causava o brilho da minha testa do que pelo meu conforto enquanto cliente. O preço do corte é igual ao que cobras mas este custou-me mais a pagar. Quanto ao tempo sobe para o dobro, se aí as visitas eram curtas e simpáticas esta foi longa e aborrecida. O cabeleireiro (não imaginas o que custa associar-me a esta palavra) fica no interior de um hotel e não no início de uma avenida com a porta sempre aberta para quem quiser parar e disparar um impropério ou dizer olá. Também não tem um canário amarelo nem uma televisão onde praticamente só se vêem programas sobre a vida selvagem. Em miúdo cheguei a cortar o cabelo num barbeiro recheado de calendários religiosos antigos e fotografias do João Paulo II e onde no meio disto se anunciava numa folha A4 a venda de mel "ao natural". Por receio de que o anúncio se materializasse num velho nu a negociar o doce referido nunca cheguei a perguntar o preço dos frascos. Uma vez ao ver-me esperar perguntou o que é que ia ser, respondi-lhe que queria comprar arame farpado e ele mandou-me sentar, ignorando o sarcasmo. Doía-me sempre a cabeça depois de sair, parecia que cortava o cabelo à paulada. Contigo nunca foi nada disto e o único réclame que tens na parede é de um homem que renova licenças de arma e cartas de caçador, por certo um favor concedido a algum companheiro de tiros. Lamento ter sido eu e não a reforma que há anos ameaças (se bem que a da SPAL já ninguém te tira) que tenha levado a este meio, porque isto é apenas um meio e não o fim. Durante anos pensei que não cortaria o cabelo em outro lugar se não aí, o mesmo vale para a leitura da versão física do Correio da Manhã. Mesmo não gostando de admiti-lo sei agora que não era verdade, isto em relação ao cabelo, quanto ao jornal mantém-se e desde o nosso último encontro que não pego numa edição do dito cujo. O cabelo não ficou como fica quando são as tuas tesouras mas está próximo e, apesar de tudo, estou satisfeito. Continuarás a ser o meu barbeiro e noutras condições não o diria mas por agora a exclusividade terá de ficar suspensa. Espero que a caça vá bem e os níveis de colesterol também.


Abraço,

Rocco


P.S.: Já conseguiste pôr o anúncio de não sei o quê que querias vender no Olx?

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